Ao suspender Rússia, Huawei mostra China globalizada
Os funcionários da Huawei, acostumados a jornadas extenuantes e reuniões madrugada adentro com seus chefes na China, vivem a incomum sensação de ter tempo livre. Ao menos os colaboradores da divisão russa da empresa, que entraram em férias remuneradas desde meados de abril e puderam apreciar a chegada da primavera no hemisfério Norte.
O movimento da Huawei é sintomático da realidade da nova China, aberta e globalizada, e contradiz o consenso apresentado pelos analistas políticos internacionais de que o país asiático está de acordo ou apoia a invasão da Ucrânia.
Posicionamento da Huawei sobre a guerra na Ucrânia
Como todos sabemos, a agressão à Ucrânia, um país soberano e independente, é — com correção — amplamente rejeitada pela comunidade internacional, que retalia a Rússia com todos os tipos possíveis de boicote.
Um argumento muitas vezes levantado em análises políticas, é o de que a China poderia dar o golpe fatal em Putin, recusando-se a fazer comércio com a Rússia. Mas prefere explorar a “oportunidade” para ganhar mercado no país euroasiático.
Uma prova disso seria, por exemplo, os serviços que a chinesa UnionPay presta aos bancos russos em substituição à Visa e Mastercard. Nada mais equivocado.
Se não, vejamos. A economia russa é, na verdade, bastante modesta. A depender de como o PIB é calculado, a Rússia é menor (economicamente) que o Brasil, ambos países com um produto interno dez vezes menor que o chinês. Grande, de verdade, é o mercado americano. E o da União Europeia. Em ambas localidades, nada é mais desabonador do que aparecer em uma foto como aliado russo.
De olho nos mercados que verdadeiramente importam, a Huawei deu férias a seus funcionários russos e deixou, por acabar, seus projetos com a Megafon, MTS e Veon, três das maiores teles russas, todas clientes das soluções 5G da Huawei.
Qual o posicionamento da China no conflito entre Rússia e Ucrânia?
É pertinente perguntar se, uma vez que a Rússia não é, assim, tão estratégica, por que diabos a China não condena explicitamente os crimes praticados por Putin na Ucrânia, preferindo uma pretensa “neutralidade” quando sabemos que, em uma situação desesperadora como a vivida na Ucrânia, ser neutro significa praticamente estar ao lado do opressor. Há razões para isso — e são razoáveis.
Sim, é verdade que Vladimir Putin é um criminoso de guerra, um autocrata que mandou seus jovens matar (e morrer) em uma guerra condenável.
Apesar de tudo isso, ele teve um motivo para agir: bloquear o avanço da aliança militar da Otan rumo às fronteiras russas. Pense em ordem reversa: se o México fizesse um acordo militar com a China (ou a Rússia, tanto faz) que lhe permitisse receber e instalar equipamentos militares sofisticados, voltados para as grandes cidades americanas, como os Estados Unidos reagiriam? Por muito menos, os americanos invadiram Iraque e Afeganistão, igualmente nações soberanas.
Para a China, não interessa o conflito na Ucrânia. Como não interessava a pandemia de Covid. Aliás, para o maior exportador do mundo, que caminha a passos firmes rumo à posição de maior economia global, o que menos interessa são turbulências que afetam o crescimento de seus mercados consumidores.
Igualmente, não interessa fazer qualquer movimento que apoie a expansão militar americana que, de mais a mais, mantém bases no Japão, na Coreia e em Taiwan, todos vizinhos próximos de suas fronteiras.
Logo, por qual razão a China deveria enfraquecer a resistência russa à Otan, se ela própria se vê às voltas com a ameaçadora presença americana no Pacífico?
Já no campo das sanções econômicas, por bem menos, a China sofre retaliações variadas. Impedida de importar semicondutores de fabricantes que mantêm parcerias tecnológicas com os Estados Unidos, impedida de competir em licitações de 5G em múltiplos países, por qual razão objetiva a China daria guarida às sanções à Rússia? Sanções estas que, ao sabor de pretextos americanos, poderão em algum momento voltar-se contra a própria China?
Fiel à sua tradição pragmática, a China não apoia e não deseja a guerra à Ucrânia, mas igualmente não está em posição de reforçar boicotes dos quais ela própria é vítima, sob diferentes formas.
Apesar disso, como demonstra o icônico caso da Huawei, muitas companhias globais chinesas vão limitar ou suspender suas operações na Rússia, ao menos enquanto o conflito durar. Afinal, o mercado-alvo principal da Huawei está no Ocidente — e não na Rússia.