Testamos o hotel chinês 100% movido à inteligência artificial

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Fachada do FlyZoo, em Hangzhou: autônomo do check-in ao check-out (Foto: arquivo pessoal)

Um hotel sem funcionários, sem balcão de check-in, sem chaves ou mesmo interruptores de luz. Bem, na verdade o hotel FlyZoo, localizado na cidade de Hangzhou, na China, tem todos os itens acima, mas você só os utiliza se quiser. Ou se não souber falar chinês.

Em minha última visita a Hangzhou, no distante 2019, uma época da história da humanidade em que as pessoas podiam viajar e se aglomerar, hospedei-me por uma noite no hotel-modelo da empresa. A reserva do quarto pode ser feita pelo onipresente superapp Alipay ou, alternativamente, pelo Booking.com, opção mais popular entre estrangeiros.

Quando foi inaugurado, em janeiro de 2019, o hotel fazia check-in via um robô não-humanoide, posicionado no hall de entrada. Cris Zhang, gerente do FlyZoo, me explicou que o robô virou uma celebridade em Hangzhou e o assédio dos turistas prejudicou seu trabalho, o que levou o hotel a substituí-lo por totens de autoatendimento.

É neste “totem” que você digitaliza sua identidade (ou passaporte, se for estrangeiro) e pronto. O check-in está feito. Uma mensagem de texto é enviada para seu celular, com o número de seu quarto. E só. Nada de chaves ou cartões magnéticos, a não ser que você as solicite, o que não fiz. Meu quarto ficava no 9º andar e, no elevador, foi preciso pressionar o número "nove".

"Inicialmente, o elevador reconhecia seu rosto e te levava direto para seu andar. Mas notamos que, quando ele estava cheio, as câmeras se confundiam e, então, achamos melhor liberar o sistema tradicional de botões", contou-me Cris. Bem, na verdade, as câmeras de reconhecimento continuam funcionando. Fiz o teste e apertei o andar errado. Nada de ele se mover. Apenas quando pressionei o número nove, ao qual a câmera de face recognition me associava, consegui me mover.

Nos corredores, o visual é high-tech e vending machines oferecem lanches, sucos, iogurtes, refrigerantes e cervejas. O método de pagamento é o “smile to pay”. Uma câmera na máquina de vender reconhece seu rosto e, se você sorrir, debita o valor de sua carteira no Alipay, liberando a venda do produto solicitado.

Braço mecânico prepara bebidas no bar autônomo do FlyZoo (Foto: arquivo pessoal)

Ao achar meu quarto, bastou olhar para a porta e ela se abriu.  O sistema é preciso e, em inúmeros testes, não errou uma única vez, bem como me impediu nas tentativas que fiz de invadir quartos alheios. O uso do rosto como senha biométrica permite controlar o acesso dos hóspedes por toda a propriedade. No refeitório, por exemplo, uma câmera é capaz de reconhecer se selecionei a diária com ou sem café da manhã. Como, no meu caso, o café estava incluso, foi olhar para um totem e ouvir "Huānyíng nǐ", literalmente, "bem-vindo". O café estava liberado.

O mesmo vale para acessar a academia de ginástica do hotel. É olhar para a porta e ela se abre. Dentro da área comum, esteiras e equipamentos de musculação se pareiam por NFC com seu celular, registrando seu treino. O item mais inovador, no entanto, é uma pista de aula de ginástica com projeção no solo. É uma espécie de Just Dance, mas sem aquela maluquice se projetar mil movimentos para fazê-lo errar a maior parte. São projeções em velocidade adequada para ensinar o aluno a alongar e exercitar-se de forma correta. O professor pode dar a aula presencialmente (caso do meu treino), remotamente (projetado em um telão) ou virtualmente. Neste caso, um avatar digital pode ensinar os alunos a fazer movimentos de pilates ou uma aula de dança.

Sala de ginástica com projeção de movimentos e professor-avatar (Foto: arquivo pessoal)

A maior parte da diversão – se você souber um pouco de chinês – no entanto, está dentro do quarto.  Praticamente todas as atividades triviais como ligar a TV, a iluminação, abrir e fechar as cortinas e tocar música podem ser feitas por comandos de voz. Um pequeno assistente virtual acessado pela palavra-chave "Tian Mall Jin Li" pode fazer as tarefas solicitadas, se ouvir a orientação certa como "kai dianshi", que significa "ligar TV' ou "guan deng", apagar a luz.

Se você pedir, por exemplo, ao Tian Mall um pouco de água, um sanduíche ou mesmo toalhas limpas, ele solicitará ao serviço de quarto que o envie para você. Neste caso, um robô virá até seu quarto e, ao se aproximar de sua porta, um sensor fará a campainha tocar.

A segunda melhor coisa de ser atendido por um robô no serviço de quarto é que você pode estar nu ou em roupas mínimas que não haverá constrangimento algum.  A primeira, no entanto, é que você pode ficar o tempo todo em sua cama. Quando ouvir a campainha, peça ao assistente virtual para "kai men", que literalmente significa "abrir a porta" e o robô entrará até você.

Robô que opera serviço de quarto no FlyZoo: recebê-lo no quarto não gera constrangimento (Foto: arquivo pessoal)

O robô delivery possui três gavetas, o que lhe permite sair da cozinha com três entregas. Para evitar que um hóspede furte a refeição de outro, cada usuário recebe uma senha por mensagem de texto e deve digitá-la em um LCD no robô, para acessar exclusivamente seu pedido.

Áreas comuns de hotéis chineses, como uma sala de caraoquê (o famoso KTV) e lobby bar são também apinhados de tecnologia, como o uso dos braços mecânicos Ratio, capazes de preparar bebidas e servi-los com exímia precisão em copos de vidro delicados, manipulando garrafas e taças.

Evidentemente, não é intenção do grupo criador do hotel competir com redes de hotéis pelo mundo. A ideia básica por trás do FlyZoo foi criar um show room de tecnologias de inteligência artificial que a companhia possa vender para empresas de hospitalidade no mundo todo. De acordo com a corporação chinesa, construir um hotel similar ao Fly Zoo, com todas as tecnologias embarcadas em seus 290 quartos, custa US$ 736 mil, além de US$ 200 mil anuais em custos de manutenção.

A companhia calcula que a redução com gastos de pessoal, em função da automação, é da ordem de 50%, o que pagaria os investimentos em um prazo de até oito anos. Além disso, a empresa aposta que o apelo cool do uso intensivo de tecnologia torne os hotéis que adotarem as soluções do Alibaba mais rentáveis, justamente por atrair mais hóspedes e ter taxas de ocupação mais elevadas.

Como usuário, é impressionante o grau de maturidade das tecnologias apresentadas, com falhas mínimas, que quase todas atribuo ao fato de, sendo estrangeiro, pronunciar com erro ou sotaque acentuado demais, os comandos em chinês.  É simbólico também que o "Estado-da-Arte da hotelaria com Inteligência Artificial" (AI, na sigla em inglês) ignore totalmente qualquer idioma que não o chinês, na enésima demonstração de que a China é tão grande, com um mercado interno tão promissor, que mesmo companhias brilhantes como o Alibaba dão se ao luxo de ignorar o resto do mundo em sua vitrine de AI.

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Felipe Zmoginski

Felipe Zmoginski é fundador da Associação Brasileira de Inteligência Artificial e foi head de marketing e comunicação de empresas de tecnologia da China, como Baidu e Alibaba. Zmoginski é fundador da Inovasia, consultoria especializada em organizar missões para a Ásia e colunista do portal UOL.

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